MIGUEL CARDOSO
Já não sou novo demais
para ter a vista cansada.
Tenho a vista cansada.
como o áugure que, com a ponta do seu cajado, corta um rectângulo fictício do céu,
Sendo nós sentidos figurados
Recipientes frágeis
Depósitos de grandes esperanças
E erosões
Hospedeiros de danos vários
Assentadores de lugares
Seguíamos por memórias alheias
Morávamos em álbuns de família
Cantava-se a água dentro de portas
Premindo Play na língua estripada dos ecrãs.
O mar daqui não é um grande espaço
Avança-se / na imagem
até ela doer / lá dentro
onde / não há dentro
Como arrancar daqui o custoso romance da realidade?
Tentativa de compor o objecto, ainda assim.
Delimitar o campo.
Num caderno
uma sucessão de ecrãs
Um verbo: baldear
Seguíamos por famílias de palavras
Areia. Azul. Demasiado.
Quarteira lembrada.
Diz-se:
Não tenho presente
Na memória
A infância era só um cordel atado a um dedo.
A fotografia / um químico / como o gelo.
Metal provisório / Põe pausa na carne.
Uma imagem:
Os prisioneiros mascavam pão
Para disfarçar as grades da janela
Desgastadas devagar pela serra
Fingiam a sua conservação intacta
Dormiam
Estendidos, pareciam mortos
Em Lisboa, à secretária,
assistia ao Verão
suspenso dos séculos passados.
(Fundo sem fundo)
Fotografias estavam à disposição por fora.
Iluminava-as com um sol artificial movível.
Olha eu ali
Linha oblíqua da espuma.
E Azul. Demasiado.
Azul a sul
Da minha vida / Ao fundo/ Desfocada.
Um desses Verões granulados.
Sucessão de intervalos
Ligados por invernos
em branco
reverso das fotografias.
Olha eu ali.
Como nos livros de História da Arte
quer versam as artes / tristes de ver
em detalhe / ao longe / lá atrás
Animação suspensa
A gravidade era uma força
que se servia dos corpos
dobrava-os como pregas na claridade
E o linho corria grandes distâncias até ser toalha de praia.
Da Hungria veio champô para o fim de semana
De Portimão os filetes desossados para os turistas.
Os esgotos são espaços entre as acções e os frutos.
Como o gelo a fotografia o desvio o abandono
Seria necessário atravessar memórias.
Fabricá-las
Por linhas curvas
“…rodeado de imagens do mar por todos os lados.
O mais das vezes, contudo, não eram, na verdade, senão imagens;”
O mais das vezes
Vozes vinham perturbar a mesa de trabalho.
365 curvas até Almodôvar. Deitou-se no barco a dormir. As bruxas tomaram conta da embarcação. Remaram até ao Brasil. Ao acordar, nas mãos tinha uma flor que só lá havia. A sul de Carvoeiro fica a Gronelândia e entre o Burgau e Lagos está o Mar Negro.
Uma breve história do século XX:
As pessoas mudavam-se
para casinhas
no quintal
lá atrás
levavam tudo
consigo
alugavam a parte da frente
faziam que não existiam
no Verão
entre parêntesis
Aqui, uma casa.
Abrigo. Nicho. Toldo.
Um arranjo das coisas.
Mistério enquadrado.
É demasiado
o mundo
quanto mais os mistérios.
Diz-se: Varrer da memória.
Um sistema. Para que os objectos se disponham.
Contenção de danos.
Sinais para os deuses
quem vir de cima
Uma estrutura
Para que os corpos não se percam no vasto.
Alguns estendidos parecem mortos
Outros correm
Seguram-se senão caiem
Amorosos da gravidade
Os humanos levavam as casas para a areia.
Não somos bichos.
Uma casa. Abrigo. Nicho. Toldo.
Um arranjo das coisas.
Espaço cultivado.
Animais de hábitos imaginam futuros quietos
(alguns, estendidos, pareciam mortos)
Os humanos levavam a areia para a beira das casas.
Ofereciam-na à infância humana.
De qualquer modo
Quarteira nunca foi Quarteira.
«Risonha e laboriosa
praia» parte-se em dois
Peixe Pão dois que são só um
Nosso de cada Dia Noite
Bom Safio e Sebatelha Magra
Pele e osso. Parte-se
em três
Praia Povo Cavacos
A população em mancha de óleo
ao longo do litoral
e linearmente ao longo
da EN125
Parte-se
em partes
O mar com músculos
veias tripas vértebras vontades
Onde a linha
do progresso
fio rede roda enredo
desvio depois desvendado
Seria preciso atravessar memórias
No detalhe na lonjura
citar
nomes cifrados
rostos rasurados
ficheiros encriptados
pausas no progresso
Ao voltar à vida, danos nos nervos
Inventara-se a fotografia . Métodos de refrigeração. Anestesias.
Investigava-se a ressuscitação drenando o sangue de cães.
O mar induz hipotermias.
Depois descargas eléctricas. Danos nos nervos.
Eis a história da suspensão do tempo.
Agora de trás para a frente.
Produz-se a infância. Sonham-se desenvolvimentos. Caixa de areia na sombra de prédios altos. Muralhas. Destroços de futuros antigos onde entra muita luz. Lá atrás faz sombra.
Os lobisomens eram homens coxos pequeninos antes
Em Lisboa constrói-se uma ponte para o Sul. Entretenimentos. Amortecedores para veículos. Óculos fumados. Os caminhos de ferro alinham horas e nomes antes turvos. Encurtam-se os espaços de vidas alongadas em partes.
Multiplicam-se os acessos ao Verão. Encaminham-se as águas. Constroem-se docas. Desce-se do Barrocal. Os pescadores rumam a Matosinhos, cruzam pontes a pé, elevam-se em elevadores. As revistas passam a ter cores para o azul ser menos imaginado.
A electricidade arreda o escuro. As caixas arredam o cheiro. Os contentores não revelam interiores. A distância entre dois pontos é mistério de sal e suores.
As férias pagam-se. Casas. Nichos. Reparte-se o tempo. Chega-se à infância anos depois guardada em gavetas.
Inventara-se a fotografia e outros métodos de refrigeração.
Suspendia-se a carência
A contenção do corpo
Novas memórias:
Um punhado de areia move-se
um metro
sobre a areia
Areia sobre areia
Vem um cão cheirar a altura das calças
Onde a água chegou
salgada
Varre-se a areia na ilha de Faro
Em Quarteira ela é lembrada
Na ilha de Faro uma mulher sai
de robe varre
a areia para longe da porta
Em Quarteira ela é lembrada
Chegava aqui
Uma sombra
Diz-se Aqui para dizer Antes
Onde ela chegava
Onde o cão cheirava
A linha do tempo descose-se
A saturação da cor dos postais aumentava. Melhorias técnicas, novos pigmentos, paleta mais luminosa. Com o tempo, o efeito esbate-se. A nova paleta é agora convenção desmaiada.
Céu embaçados. Rostos sumidos.
É então forçoso carregar a cor para que pareçam naturais.
Avança-se na suspensão do tempo
Arrancando o plástico
O interior da carica é incandescente
(Olha eu ali)
Havia mil gentes baças ao fundo
Depois de gastar as abas das mangas
À procura de isqueiros cada vez mais fugidios
As pessoas tiram férias
Sabe-se lá donde
De romances cartas postais
Com o passar do tempo
Pelas superfícies
Perde-se a nitidez
Perdi-me eu
E as comunidades incertas
preservam-se, congelam-se
entre parêntesis
debaixo de nomes
em cima ao canto
Reproduzem canções
Marcam os sítios
Mar dos Rolos, Mar da Lama, Pedra do Bucho, Pedra de 13.
Desenharam-se linhas nas águas para as prenderem ao fundo.
ao fundo
onde há peixes e mortos
Há talvez refúgio
dos refúgios temporários
Na baixa resolução da memória
Na descaracterização do humano
Dentro do humano
ali dentro
do visível que não tem dentro
Em tempos fizeram-se enormes avanços
Esticávamos a perna ao máximo adiante
Mas no sítio onde ela pousou não estávamos lá
Pausa na carne
Caminhar correr sem avanço
À disposição por fora
Dentro de um aro movente de concentração
Fruto do Acaso da Lente
Pausa na carne
Desembaraçam-se os fios
Todos os enquadramentos são provisórios.
Esborratados
fingiríamos estar à mercê das lupas
no fundo desfocado
de um postal de férias
Transportaríamos só cargas secretas
Suspensas do próprio tempo
Livres do peso e substância do humano
…
…
E no reverso branco
Poderíamos fingir que não existimos
Não era em todo o caso certo
Não fugir.
Perder-se
Do lugar
Seria só uma catástrofe
dentro da catástrofe
Um parêntesis
Um parêntesis
Onde se pode escrever
como o áugure que, com a ponta do seu cajado, corta um rectângulo fictício do céu
( )
Miguel Cardoso escreve, ensina, ensaia, etc.