Alguns apontamentos sobre La Mala Educación (2004) de Pedro Almodóvar: Sara Montiel & Gael García Bernal

PEDRO CRAVEIRO

 

The whole point of Camp is
to dethrone the serious. Camp is
playful, anti-serious.
SUSAN SONTAG

I like the way she [Montiel] sings,
the ‘kitsch’ of her films.
PEDRO ALMODÓVAR

 

O camp como subversão ao franquismo

Não há dúvida de que La Mala Educación (2004) de Pedro Almodóvar se serve da sensibilidade camp. Tendo em conta a definição de Susan Sontag, em “Notes on Camp”, enquanto “a mode of seduction – one which employs flamboyant mannerisms susceptible of a double presentation; gestures full of duplicity, with a witty meaning for cognoscenti and another, more impersonal, for outsiders” (281), é possível contemplar a presença dessa expressão em Sara Montiel, atriz e cantora espanhola dos anos 40 e 50, e na figuração de Montiel por Zahara (Gael García Bernal). A verdade é que Montiel é uma representação do regime franquista e da identidade nacional espanhola. Por isso, as minhas perguntas são: por que razão Almodóvar incluiria no filme uma referência direta ao franquismo? Em jeito de provocação? Para lembrar as consequências que o franquismo traz até aos dias de hoje?
 

Sara Montiel & Gael García Bernal

Montiel pode ser lida como um estereótipo da era de Franco. Porém, no filme, a cantora tem uma outra leitura, sendo reciclada de modo a subverter as formas de representação franquista e, consequentemente, desse passado. Marvin D’Lugo, em “Postnostalgia in Bad Education” confirma que existe um fetichismo histórico em torno de Montiel:

The simulations of Montiel within the Bad Education are symptomatic expressions of the historical fetishzation of a particular kind of collective yet personalized “pastness” associated with the “culture” of female impersonators in the entertainment scene of Spain in 1970s. From the 1940s on, the travesti or female impersonators had been a staple of the Spanish music-hall circuit, whose formula for success was the imitation of stars, especially those identified with popular folkloric music, such as the bolero and cuplé or torch song. 371

A estratégia de Almodóvar consiste em inverter toda essa carga significativa anterior e, através da expressão camp, tornar Montiel num símbolo de empoderamento gay/queer. Zahara, nome artístico de Ignacio, representado por Juan/Ángel (Gael García Bernal) sintetiza esse espaço de resignificação:

Vestindo um body do estilista francês, Jean-Paul Gaultier, exibindo as nádegas, os mamilos e os pêlos púbicos, Zahara invoca Montiel ao cantar em lip-synching a canção “Quizás, quizás, quizás”, composta pelo cubano Osvaldo Farrés e famosa, nos Estados Unidos da América, graças a Nat King Cole. O episódio evoca por momentos a cena do filme Noches de Casablanca (1967), dirigido por Henri Decoin, em que Teresa Vilar (Sara Montiel) canta o mesmo tema.

A performance de Zahara vai ao encontro da ideia defendida por Sontag, quando comenta que “the Hallmark of Camp is the spirit of extravagance. Camp is a woman walking around in a dress made of three million feathers. (…) In Camp there is often something démesuré in the quality of ambition, not only in the style of the work itself.” (283) Esta representação de Montiel, visualizada por Enrique ao ler as primeiras páginas de “La visita”, enfatiza a existência de um espaço de liberdade e criatividade para a comunidade gay. Acrescento, esse espaço de reinvenção é extravagante e assume “(…) a historical trace, her image continually alluding to and confirming the presence of the historical field outside the filmic fiction.” (D’Lugo 372)

Ao lado de Lola Flores e Rocío Jurado, Montiel é personificada sucessivamente, configurando-se enquanto resposta ao ambiente repressivo e marginal, com o qual a comunidade LGBTQ sofria na época franquista. Comparada a Mae West e a Marlene Dietrich, a cantora espanhola é, sem dúvida, “an incipient form of gender politics that will come to the surface in the gay culture of immediate post-Franco period. It is precisely by privileging anachronism as camp, with all implied history of gay marginalization under Francoism, that Montiel’s condition of “pastness” becomes cipher for the films historicizing project” (idem 373).
 

Sara Montiel: entre o empoderamento gay e a liberação sexual

Outra referência a Montiel surge ao longo do filme. Se a primeira é performativa, excêntrica e de cunho intertextual, insinuando uma evidente expressão camp, a que se segue é necessária para entender que há um caráter kitsch associado ao camp: “Many examples of Camp are things, which, from a “serious” point of view, are either bad art or kitsch. Not all, though. Not only is Camp not necessarily bad art, but some art can be approached as Camp (example: the major films of Louis Feuillade) merits the most admiration and study.” (278) Destaco, a título de exemplo, a cena em que os jovens Ignacio e Enrique vão ao Cine Olympo ver o filme Esa Mujer (1969). Dirigido por Mario Camus, Sara Montiel é uma freira (Sor Soledad) que, mais tarde, será uma mulher do mundo. A cena do original, representada em La Mala Educación, é o regresso dessa ex-freira ao convento:

– ¡Pase, pase!
– ¿En que puedo servirla?
– ¿No me reconoce, Madre? ¿Tanto me ha cambiado el mondo?

A atuação de Sara Montiel, neste excerto fílmico, momentos antes dos dois jovens se masturbarem, atesta o fetichismo em torno da atriz. É nesse instante, ao olhar para Montiel, que os jovens observam o seu futuro: Ignacio como drag queen e Enrique como realizador de cinema. Aliás, esse plano é, intencionalmente, realçado:

Desta vez a iconografia de Montiel surge vestindo um véu púrpura e com uma enorme carga sexual: “The staging of this scene – technically a film-within-a-film-within-a-film – reaffirms the notion of the theatrical as constituting a privileged space of sexual freedom and artistic creativity” (D’Lugo 375). Por este motivo, a cena da masturbação entre Ignacio e Enrique é a metáfora perfeita para reproduzir esse espaço não-repressivo (Sara Montiel), distante da norma institucional e da convenção religiosa (o colégio).

O camp traduz, na figura de Montiel, não só uma exuberância e excesso caracterizadores desse espaço autónomo, mas também um processo de transgressão da memória. Quero dizer: ao focar a atenção numa atriz da era de Franco, Almodóvar despersonaliza toda a carga do passado associada a Montiel, fazendo com que um elemento folclórico do cinema espanhol seja um elemento mainstream de uma comunidade marginalizada. Almodóvar revolve, apoiando-se na sensibilidade camp, todo o processo da memória coletiva, como se fosse um ato de de-dragging:

La Mala Educación can be read as a film about de-dragging. Like its opening sequence, every scene in the film is a removal of the layers and fragments to expose what is underneath. The de-dragging reveals the repression of desires that have not been confronted by the state, the Church and the individual. By taking a queer approach to memory, we are held responsible for dealing with the materiality and affective performance of the body, which show the process is never complete and therein lies its transgressive nature. Cervantes 433

Por fim, é possível relacionar a cultura homossexual durante a Transición do regime ditatorial com a sensibilidade camp e equacionar a hipótese de que esta estática foi essencial, enquanto espaço de representação das dissidências sexuais, e uma tendência para reciclar certas figurações franquistas: “Popular cinema, pop music, radio soap operas, or music genres as coplas and boleros, previously appropriated by the dictatorship’s control of dominant culture, become after Franco’s death referents suitable to be charged with new meanings, in the context of the post-dictatorship sexual liberalization of the late 1970s” (Álvarez 141).

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OBRAS CITADAS

SONTAG, Susan. “Notes on Camp.” Against Interpretation and Other Essays. Nova Iorque: Picador, 2001. 275-292.

ALMODÓVAR, Pedro (real.). La Mala Educación. 2004.

D’LUGO, Marvin. “Postnostalgia in Bad Education: Written on the body of Sara Montiel”. All About Almodóvar. Ed. Brad Epps & Despina Kakoudaki. University of Minnesota Press, 2009. 357-385.

CERVANTES, Vincent D. “Drag acts of transitional performance: sex, religion and memory in Pedro Almodovar’s La mala educación and Ventura Pons’s Ocaña, retrat intermitent.” Journal of Spanish Cultural Studies 15 (2015): 419-436.

ÁLVAREZ, Ana María Vivancos. Failure to deliver: transitional masculinities in the late and Post-Francoist films (1963/1984). Urbana, 2010.

 

Pedro Craveiro é professor, estudante, investigador.

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