A persistência da cruz na cultura pop: esboço para atlas

SABRINA D. MARQUES
 

A cruz pop


 

A cruz invertida


 

A cruz destruída


 

A cruz sugerida

 

A cruz é o mais totalizante dos símbolos.
JEAN CHEVALIER & ALAIN GHEERBRANT

Era algo puramente visual ao início, mas achámos interessante fazer música que pudesse ter um pouco o mesmo efeito junto das massas que uma celebração religiosa. A cruz está no meio da palavra JUSTICE e está no meio do palco, é o nosso frontman.
JUSTICE

 

A CRUZ CRISTÃ

Nas suas diversas formas, a cruz é um símbolo recorrente que é associado a formas de religiosidade primordiais. As mais ricas interpretações do símbolo iniciam-se nas mais fundamentais coordenadas nele contidas: do centro, que corresponde à intersecção dos seus pontos, partem os eixos referentes aos quatro pontos cardeais terrestres. A cruz constitui-se, assim, como a base de todos os instrumentos de orientação, apresentando-se como a grande mediadora entre o céu e a terra. Mas será sobre a Cruz Cristã (Cruz Latina ou Cruz Protestante), que enriqueceu prodigiosamente o simbolismo da cruz, que aqui nos debruçaremos, mesmo que à superfície. No paralelismo com a cruz bíblica – que simboliza a Paixão e a Crucificação e que surge em vez do próprio crucificado, segunda pessoa da Santíssima Trindade (o Cristo, Salvador, Verbo, Messias) –, a cruz latina estabelece uma analogia com temas cristãos fundamentais: enquanto Árvore da Vida, apresenta-se como ponto ou escada pela qual os homens se aproximam de Deus, complexificando-se na sua metade superior; a sua madeira faz alusão à arca, às varas prodigiosas com que Moisés abriu as águas, ao bastão no qual se suspende a serpente de bronze, etc. Os versos de William Blake, “Num jardim lá nus / viu-se a sacra cruz”, aludem precisamente à convergência entre a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal (Jardim do Éden) e a geografia da aparição primordial da cruz, que simultaneamente a torna árvore da vida e signo sagrado. A cruz da ressurreição recapitula e sintetiza a Criação, tornando-se axis mundi – eixo do mundo: “ele veio sob uma forma visível para junto do que lhe pertence e tornou-se carne e foi pregado na cruz de forma a resumir em si o Universo” (Adversus haereses, 5, 18, 3)1. Assim, afirma Cirilo de Jerusalém: “Deus abriu as suas mãos sobre a cruz para abraçar os limites do Ecúmeno e por isso o monte Gólgota é o pólo do mundo2. A expressão latina “O Crux spes unica” significa “devoção à Cruz, a nossa única esperança3 e celebra a sua origem: a narrativa bíblica fala de uma cruz construída com a madeira de uma árvore plantada por Seth sobre o túmulo de Adão, madeira que se crê capaz de ressuscitar os mortos. O seu eixo inferior enterrado na terra simbolizaria a profundidade de uma fé forte e alicerçada, e à sua estrutura vertical superior corresponderia a ascensão ao céu, assim estabelecendo uma união entre a esfera humana e a esfera divina. A cruz funciona ainda como cordão umbilical do cosmos, fazendo comunicar Terra, Céu e Inferno, mediando a interacção entre os deuses e os homens. Construída através do cruzamento de duas linhas contrárias, a figura da cruz simboliza a possibilidade de comunhão na união dos opostos e, como escreve Guénon, “é sobretudo um símbolo de totalização espacial4, diagrama da geometria basilar que preside à organização regrada do mundo.
 

CRUZ, ÍCONE PRIMORDIAL

Se a Cruz Cristã/Latina é visualmente a mais simples das formas crucíferas, simbolicamente é a mais hiper-codificada: a cruz é o imediato ícone universal da religião que representa. Peirce explica como o ícone é uma imagem mental: “os ícones mentais são imagens visuais para que o signo remete5 e que, não só o ícone existe na consciência, como pertence aos “signos que mantêm uma relação de similaridade com as coisas”. Apesar da literalidade evocativa da crucificação, a cruz cristã é também síntese, índice e metáfora, retendo uma pluralidade de significados, de natureza literal, histórica e simbólica, e sendo, simultaneamente, símbolo humano e símbolo divino. A cruz ordena e mede os espaços sagrados. A Catedral de Pisa, a Catedral de Salisbury ou a Catedral de Santiago de Compostela (FIG. 126) são exemplos medievais de templos construídos com uma Cruz Cristã na base: as extremidades das duas rectas (quatro pontas) dirigem-se aos quatro pontos cardeais principais (Norte, Sul, Este, Oeste) e no centro situa-se o quinto ponto – o Mistério.
 

O ANTROPOCENTRISMO DA CRUZ

Índice do universal e do particular, a cruz resume (metonimicamente) a vida de um só homem – a paixão de Jesus – e apresenta-a (via crucis ou via-sacra) como imagem absoluta de uma purificação destinada a todos (a Ascensão). Analogia da vida de Cristo (FIG. 109), a cruz cristã distingue-se entre duas cruzes fundamentais: a cruz do martírio (que alude à escatologia da penitência) e a cruz da redenção (a cruz como “o anzol que resgata a Terra do demónio6 e que salva a vida da alma da morte do corpo). Como afirma Joseph Campbell, “A cruz é o mundo, o mundo enquanto matéria7. O paralelismo entre a figura da cruz e a presença do humano de braços abertos ressurge, assim como a ideia de voo/elevação aí implícita. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant detalham como “nas tradições judaicas e cristãs, o signo crucífero pertence aos ritos primitivos da iniciação – a cruz cristã é anunciada por figuras no Antigo Testamento, como os montantes e barrotes das casas dos Judeus, marcados com o sangue do cordeiro sob um signo cruciforme8, o que nos evoca o episódio do Livro do Êxodo (Antigo Testamento) que relata a fuga de Moisés e do povo israelita do Egipto: uma salvação corpórea e espiritual, literal e simbólica.
 

CRUZ, A ESPADA DA GNOSIS

O velho testamento narra que, no Jardim do Éden, uma espada em chamas guarda o caminho para a Árvore da Vida. A figura da espada é a cruz invertida. O filme de João César Monteiro, O que farei eu com esta espada (1974) endereça a recente arma portuguesa – a democracia –, mas também o passado cristão que funda a mais primordial ideia de nação ou de pátria espiritual: uma mulher trajada de cavaleiro templário segura uma espada que se apresenta como analogia das cruzadas e das conquistas pelo cristianismo (os Cruzados exibiam ostensivamente a cruz em escudos, armaduras, cavalos, etc, para lá das espadas). Da mesma forma, as famosas lendas medievais anglosaxónicas do Rei Artur e da Távola Redonda narram, com contornos messiânicos, como só um jovem rei esperado conseguiu, por perfeição moral, retirar uma espada cravada na pedra – assim estabelecendo uma correspondência entre a espada-cruz e a gnosis cristã. Como uma actualização desta narrativa do herói prometido, a demanda espiritual conduzida pela saga épica Star Wars (FIG. 172) evoca uma ideia convergente que relaciona salvador e predestinação, associando a luta directa com a espada (sabre de luz) à destreza daquele nascido com qualidades exclusivas (o Escolhido, o que possui dentro de si “a Força”). Esta potência é guiada pela personagem do Mestre Jedi, sábio conselheiro que evoca uma figura ancestral de outras mitologias9 – a do velho mestre de espadas japonês, orientador de Kenjutsu (ancestral escola japonesa dedicada ao ensino do “caminho da espada”). Nos filmes de culto da Hammer (FIG. 95), é comum que as Cruzes sejam enormes e surjam como a derradeira arma invencível, infalível método que vence todos os vampiros (FIG. 5) e exorciza todos os demónios (FIG. 173).
 

A CRUZ DE SÃO PEDRO

A Cruz de S. Pedro ou Cruz Petrina é uma Cruz Latina invertida, que surge por analogia à Cruz Cristã – tanto em convergência como, mais recentemente, em divergência do seu referente Cristão. O seu significado está directamente dependente do contexto em que surge (FIG. 170-189). Apesar da sobreposição de versões da mesma narrativa, sabemos que a sua origem remete à inusual crucificação do Apóstolo São Pedro (um dos fundadores da Igreja de Roma, com São Paulo) de cabeça para baixo. Se num contexto em que o Exército Romano de Nero – déspota sem escrúpulos posteriormente apelidado de “Anti-Cristo” – perseguia Cristãos que torturava e executava de maneiras bizarras (convencido de que a sua eliminação traria outra estabilidade ao Império), crê-se que foi da vontade de São Pedro ser crucificado do avesso, em sinal de humildade. Apesar das suas origens cristãs, hoje a Cruz de S. Pedro encontra-se mais frequentemente em lugares de subversão dos princípios do Cristianismo, veiculando este “espírito de Nero” e, pelo gesto da sua inversão, passando intencionalmente a significar por oposição: satanismo, heresia, anti-cristianismo, etc.
 

DESSACRALIZAÇÃO DA CRUZ

Ao teorizar sobre uma contemporaneidade caracterizada pela ‘‘religiosidade pós-metafísica’’, um lugar pós-dogmas e pós-absolutismos, Zizek nota como a relativização da ideia de ‘‘verdade suprema’’ de uma religião sobre as outras é uma consequência da globalização e da contenção cívica dos racismos e das xenofobias, anteriormente agudizados pelos antagonismos sociais fervorosamente religiosos. Recordando Hegel, Zizek sublinha as consequências iconográficas do problema da “encarnação de Cristo”, indicando como a “morte do homem miserável é a morte do próprio deus” e como os resultados deste esvaziamento de significados se traduzem numa literalização dos símbolos10. Efectivamente, é a qualidade imediatamente significante da Cruz Cristã, signo fundador tão universal como a religião que representa, que a torna mais presente na reconfiguração recorrente. O significado dos signos muda através dos tempos e o esvaziamento da figura da cruz foi, com a secularização progressiva da sociedade, plenamente cumprida com a chegada das vanguardas artísticas ao século XX (FIG. 30-33). A modernidade assinala a interrupção da metáfora continuada da Cruz, dissolvendo a correspondência entre o Símbolo e o Mistério. Dessacralizada, a Cruz surge, em primeiro lugar, como signo gráfico e visual depurado e estilizado, de significado dependente de uma descrição de contexto. Se uma sociedade hipergráfica é o lugar da banalização dos signos por excelência, a Cruz trazida ao mundano pela cultura pop assinala o abandono intencional da metáfora: a cruz surge na literalidade do seu impacto gráfico. O discurso da cultura mainstream sedimentou esta desintegração do sagrado e de um princípio transgressor de symbolum violare – violação dos símbolos (considerando os symbolae como as insígnias unificadoras da consagração da fé, Du Cange diz-nos que “violar o símbolo é pecar”). E fenómenos de massas como Madonna, na sua polémica heresia nos anos 80 (FIG. 8-10), ou Marilyn Manson, com as suas cruzes petrinas em chamas nos anos 90, sublinham as sucessivas necessidades geracionais de libertar a Cruz do contexto sagrado. Neste sentido, fazemos nossas as palavras de Mondzain ao citar Sieyès que “reclama o lugar legítimo e revolucionário que passa pela transformação de todos os lugares, dos signos e dos sítios, a fim de promover o campo de indeterminação próprio à liberdade11.

 

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REFERÊNCIAS

1 CHEVALIER, Jean et Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1982.
2 CHEVALIER, Jean et Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1982.
3 CHEVALIER, Jean et Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1982.
4 GUÉNON, René, The Symbolism of the Cross, Londres, Luzac, 1958.
5 Peirce citado por Umberto Eco (em O Signo, Lisboa, Editorial Presença, 1973).
6 RIVIÈRE, J., Le Dogme de la rédemption, Paris, 1933, pp. 231.
7 CAMPBELL, Joseph, Mythos, 1997.
8 CHEVALIER, Jean et Alain Gheerbrant, Dicionário dos Símbolos, Lisboa, Teorema, 1982.
9 CAMPBELL, Joseph, O Poder do Mito, 1988.
10 ZIZEK, Slavoj, “Is God Dead?”, conferência proferida na American Academy of Religion Annual Meeting, Palais de Congrés de Montreal, Novembro de 2009.
11 MONDZAIN, Marie-José, “Nada Tudo Qualquer Coisa. Ou a arte das imagens como poder de transformação”, A República por Vir, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.

 

Sabrina D. Marques é entusiasta de artes várias.

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